A cereja do bolo nos quadrinhos de The Walking Dead, na série de TV e, agora, nos jogos – e na verdade em qualquer revista de zumbis, série ou jogo – não é a horda de zumbis que devasta a humanidade. Quer dizer, isso é claramente parte de um todo, mas nem de longe é a parte mais interessante. As hordas perambulantes são dispositivos para colocar os humanos em situações de desespero e ver o que eles fazem quando precisam tomar decisões difíceis. Zumbis são tanto a gaiola quanto a vareta que cutuca o rato.
É por isso que a adaptação da Telltale de The Walking Dead tem sido tamanho triunfo. Ela não favorece o tiroteio atrapalhado do spin-off da série chamado “Suvival Instinct”, mas o verdadeiro drama que a série apresenta: ela nos força, os jogadores, a tomar decisões incrivelmente difíceis, frequentemente envolvendo se um personagem que passamos a admirar por causa do enredo brilhante vive ou morre.
Isso… não soa muito divertido na prática. O que é! Em parte do tempo, pelo menos. Em outras partes a Telltale nos força a tomar decisões inteiramente detestáveis, verdadeiras “Escolhas de Sofia” em que algo ruim vai acontecer não importa o que façamos com Lee ou Clementine, e nos sentiremos horríveis por tomar essas decisões. Vimos várias ao longo dos nove episódios do jogo (até agora).
Nem precisamos dizer que há spoilers pelo caminho! Confira:
O episódio 2 da primeira temporada de The Walking Dead é cheio de decisões difíceis, por isso você poderia ser perdoado por esquecer dele. Chegando ao final de duas horas extenuantes acaba tornando tudo mais difícil: tendo escapado das garras da família canibal St. John, o grupo de sobreviventes não acredita na sorte quando se deparam com um carro aparentemente abandonado cheio de suprimentos importantes.
Então, o que escolher? Há comida, munição, remédios todos ali parados, só esperando serem levados. Mas o carro está realmente “abandonado”? Ou você estaria saqueando o transporte de outro grupo de sobreviventes, ferrando com a vida deles só para que você viva um pouco mais? Não somente isso mas, como grande parte das decisões difíceis da primeira temporada, o que você escolher afetará sua relação com Clementine; e que pessoa sem coração poderia desapontá-la? Bem, aparentemente, 56% das pessoas que jogaram acabaram saqueando, mas eles provavelmente se sentiram bem mal quando chegaram no último episódio…
Na segunda temporada, Clem está sozinha e acaba encontrando um novo grupo de sobreviventes com suas particularidades, idiossincrasias e relações tensas. Um desses novos sobreviventes é Nick, um jovem cabeça-quente cuja natureza agressiva mascara um bom coração. Ou ele é mais um idiota, dependendo do seu ponto de vista. De qualquer forma, ele é um dos maiores catalisadores dos grandes acontecimentos do episódio 2 quando atira em um rapaz misterioso que só queria ajudar na ponte.
E pior ainda, o rapaz misterioso é – era – o namorado de um membro do grupo que se abrigava na estação de ski e gentilmente convidou Clem e seus acompanhantes a entrar no abrigo. Walter, o membro em questão, descobre a faca de caçador de seu agora falecido companheiro em meio às coisas de Nick e confronta Clem a respeito do objeto: você arrisca prejudicar o grupo todo ao ficar do lado de Nick ou deixa o rapaz pagar pelo seu erro, arriscando a ira de Walter? Essa é uma das escolhas que não parecem grandes no momento, mas tem grande impacto no que acontece em seguida.
Ben foi basicamente o Nick da primeira temporada. Talvez ainda mais forte, já que tudo o que ele fazia era com as melhores das intenções, mas tinha consequências catastróficas para o resto do grupo. De forma cíclica ele foi responsável pelas mortes de Duck, Doug/Carley (dependendo de como você jogou), Katjaa, e – presumidamente – Lilly. Ainda, ele tenta se salvar no início de “Aroud Every Corner”, em vez de tentar ajudar Clem em um ataque de zumbis. Que pessoa sem coração…
Então, quando você chega na penúltima parte da temporada, aparece uma escolha: ao escalar a torre do relógio, com zumbis em uma perseguição frenética, você chega ao topo, mas Ben quase cai. Se ele cair, vai morrer com certeza – seja por quebrar as pernas na queda, ou devorado por zumbis – e o grupo talvez fique melhor sem ele. O próprio Ben diz isso. Mas você aguenta ter essa morte como sua responsabilidade? É claro que Ben aprontou muito, mas ele não tem maldade no corpo. E você não tem muito tempo para decidir antes que ele escorrer da sua mão!
“400 Days” foi quase uma grande homenagem ao jogo principal de The Walking Dead. Cada capítulo era uma curta vinheta com personagens e situações totalmente diferentes, significando que suas decisões não teriam efeitos tão duradores (apesar de haver algum efeito visto na segunda temporada). Eu digo quase porque há a história de Vince.
Se parece familiar, é porque de fato existe similaridade. Como na história de Lee na primeira temporada, a de Vince começa com sua jornada para uma prisão. Mas neste caso, o futuro detento não está sozinho, já que está sendo levado em um ônibus cheio de prisioneiros amarelos. Tudo fica mais apimentado quando zumbis tomam o ônibus e Vince, acorrentado a Justin e Danny, precisa decidir qual dos dois vai perder um pé. É a única maneira de sair do ônibus antes de serem devorados, e o único jeito de sair das correntes é usando um tiro de escopeta que também deixará alguém sem pé. Quem merece mais a liberdade? Justin, um corrupto sem arrependimento que condenou pessoas inocentes à pobreza? Ou Danny, que parece boa gente apesar de ter sido condenado por estupro (o que ele jura não ter feito)?
Pobrezinha da Lily, ela passa por maus bocados na primeira temporada de The Walking Dead. Bem, quase todo mundo, na verdade, mas parece acontecer com Lily mais do que com outros: como a líder propriamente dita do grupo, ela carrega o peso da responsabilidade e o estresse contínuo de manter todos vivos e seguros. Ainda, ela era filha do Larry e mesmo que tenhamos curtido ver o esmagamento da cabeça daquele chato, ela certamente ficou menos em si após a morte de seu único parente sobrevivente.
Por isso é possível ver porque ela sai de si e atira em Carly ou Doug (dependendo de quem você salvou na farmácia), certa de que eles são as pessoas dando suprimentos para os bandidos. É claro que mais tarde descobrimos que o traidor era Ben, mas isso não importa muito. Após o acontecimento, você precisa decidir mantê-la no grupo – apesar de algemada para que não faça nada semelhante com o resto do grupo – ou deixa-la para trás, sozinha, mas mantendo o resto do grupo livre de qualquer tiroteio.
As coisas nunca terminam bem para as crianças de The Walking Dead. Tirando Clem, mas não precisamos falar sobre isso novamente. Por isso, não é nenhuma surpresa, e sim uma grande tragédia, quando o filho de Kenny finalmente sucumbe à mordida de zumbi sofrida no episódio anterior.
O que é significativamente mais difícil vem ao decidir sobre o que fazer em seguida. Você pode deixar Kenny matar seu próprio filho antes que ele seja reanimado, assim, fechando o assunto ou então deixando uma cicatriz horrível que vai assombrá-lo pelo resto da vida. Você mesmo pode atirar em Duck, absolvendo, assim, Kenny da responsabilidade… mas, bem, você precisará matar uma criança. Ou você pode deixar Duck voltar como um zumbi, o que parece uma maldade, mas isso significa que ninguém precisará atirar na cabeça de uma criança. É uma Escolha de Sofia para você. Ou uma Escolha de Lee, talvez. Se bem que ele já teve piores…
Digamos, por exemplo, você está no final da primeira temporada, tendo que tomar muitas decisões difíceis que resultam em violência, derramamento de sangue, e possivelmente morte/zumbificação. Acha que está sozinho no escuro? Ah, pobre bebê, você mal chegou até ele ainda. Até chegar em… “No time left”, tanto Lee quanto o jogador se tornaram uma só mente na sua missão: salvar Clementine. O que provavelmente o deixa suscetível a não prestar atenção ao zumbi que vai enfiar os dentes no seu braço.
A missão continua prioritária apesar de tudo. Talvez haja um jeito de se livrar da infecção que os mortos-vivos carregam. Talvez você poderia… você sabe… fazer um cortezinho no seu braço um pouco acima do lugar da mordida? Isso daria tempo suficiente para encontrar Clem! Por sorte você encontra uma serra bem perto de você… mas… a gente quer mesmo cortar o braço? Não que eu tenha me tornado apegado ou me identifique com o que quer que seja a respeito desse personagem de vídeo games com o qual passei muitas horas de emoção… Com certeza não é tão fácil quanto Bruce Campbell faz parecer.
Na maior parte do episódio mais recente da segunda temporada as coisas foram meio livres de escolhas, refletindo o quão submisso o grupo estava às escolhas de Carver, o líder louco por poder em um acampamento situado em uma loja abandonada. É bem intenso, e muito dramático de se participar, mas somente no final de “In Harm’s Way” (Nas mãos do perigo) é que Clementine precisa tomar uma decisão impossível.
Ou talvez devesse ser “In Arm’s Way” (Nos braços do perigo)… hahaha, sacou? Porque Sarita, a nova companheira de Kenny, se vê presa a um zumbi que passa a morder seu bracinho delicioso. Nessa fração de segundo, a Clem com um machado na mão tem a escolha de atacar o zumbi – acabando com a sua refeição – ou cortar o braço de Sarita, algo que você provavelmente teria que fazer mais tarde para estancar a infecção (como aconteceu com Lee). Essa escolha é muito intensa porque acontece no calor do momento, e você não tem muito tempo para pesar as opções. Você age por instinto, e as consequências são bem… é, dê uma olhada na imagem.
“Starved For Help”, como descobrimos, é talvez o episódio mais sofrido do jogo até o momento. A Telltale vestiu bem a máscara de sadismo quando escreveram o episódio, ao ponto de que quando você finalmente tem a oportunidade de se vingar contra o louco e canibal Danny St John, mesmo assim não é uma decisão fácil.
Quer dizer, deveria ser – o cara lhe deu carne humana para que você comesse sem saber, e depois o trancou em um abatedouro com a intenção de fazer de você e do seu grupo a refeição principal – mas quando isso está prestes a acontecer, não é tão simples. Parte da sua ira nesse momento está, sem dúvida, colorida por quão protetor você se sente com relação à adorável Clementine, a garota órfã que está sob seus cuidados. Ela entra sorrateiramente no celeiro por trás de você enquanto confronta Danny com uma foice: ele merece morrer, certamente, e você se sentiria muito melhor se pudesse fazer essa justiça. Ao mesmo tempo, Clementine, uma garotinha que vê em você uma figura de pai, vai assistir enquanto você espeta um homem desarmado. O que fazer, o que fazer.
Muitas decisões importantes em The Walking Dead tendem a ser momentos pesados e dramáticos em si: eles se apoiam no drama humano que está por trás de bons roteiros de zumbis, mas eles são eventos-chave mesmo assim. Por isso, talvez pareça um pouco contraditório que a maioria das decisões difíceis seja comparativamente simples. Ninguém vive ou morre imediatamente, ou seja seriamente prejudicado, ou abandonado no apocalipse zumbi pela decisão. Ninguém vai ter menos membros depois delas. Tudo o que você precisa decidir é quem fica com as últimas parcelas de suas porções de comida pouco nutritiva.
O grupo está bem grande a essa altura, e você tem pouca comida para distribuir. Após um sermão, a Lily “quase a ponto de surtar” passa essa tarefa a você. O que fazer então? Não importa a sua decisão, alguém vai ficar sem comida; alguém vai ficar chateado com você por não receber comida; alguém vai ficar bem à beira da fome extrema. Essa decisão engloba a luta diária em uma civilização tomada por zumbis que dá a The Walking Dead seu drama único. É a banalidade da sobrevivência. E meu Deus, como é difícil.
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Fonte: What Culture
Tradução: @Felipe Tolentino / Staff Walking Dead Brasil
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