ATENÇÃO! O post a seguir contém spoilers da nona temporada de The Walking Dead. Caso não esteja em dia com a série, não continue. Você foi avisado!
Por mais que doa dizer isso, é inegável que o prestígio alcançado por The Walking Dead em seus primeiros anos pareceu diluir-se com as quase catastróficas decisões tomadas durante a sétima e oitava temporadas da série. Da queda de audiência ao recebimento extremamente MISTO da crítica especializada, o drama zumbi, mesmo tentando mostrar um pouco de fôlego no fim de sua oitava temporada, parecia estar fadado ao fracasso conforme o novo ano entrava em produção.
Unido ao desespero da saída de nomes como Andrew Lincoln e Lauren Cohan da série, a troca de showrunners não pareceu muito positiva em sua primeira recepção – Angela Kang, que veio a substituir Scott Gimple no cargo, chegava acompanhada de um currículo desequilibrado dentro de seus créditos na série. Era este o fim de The Walking Dead?
Respondendo curta e grosseiramente: Sim. Mas não necessariamente o fim da série que uma audiência apaixonada aprendeu a amar no começo da década, mas sim da quase irreconhecível novela de ação que predominou os anos de 2016-2018 sob o mesmo pseudônimo. Angela Kang, em 16 episódios, revigorou uma série que, acredite ou não, estava fadada ao fracasso.
Mas a grande questão é: como ela fez isso com tantos obstáculos? Quais foram as decisões de roteiro que fizeram The Walking Dead, surpreendentemente, ter sua melhor temporada na história de acordo com a crítica? É isto que esta análise audiovisual irá lhe responder hoje.
The Walking Dead é uma série dramática de horror, certo? Isso todos já estão cansados de ouvir e ler em todo lugar.
Apesar de nove anos no ar, a série da AMC só conseguiu manter seu público atento e fiel graças ao elemento humano que entregou ao longo de sua trajetória. Conseguir a afeição do público para com a história não depende apenas de vísceras e matança, mas sim de personagens e situações relacionáveis, sentimentais e provocativas. Rick, Maggie, Michonne, Daryl, Carol e todos os outros membros do grupo dos “mocinhos” sempre tiveram isso, e foi a ideia de uma família totalmente disfuncional sobrevivendo no inferno que manteve o público cativo por anos e anos.
Mas o que fazer com uma série que terminou sua oitava temporada tendo seu principal elemento de afeto com o público danificado? Pense bem: apesar do fim da guerra e de todos se unirem para um novo começo, a estrutura familiar e RELACIONÁVEL da série ainda estava danificada – Maggie, Daryl e Jesus até aparecem tramando, de forma risivelmente vilanesca, contra Rick e Michonne no fim do episódio S08E16 – “Wrath” (Ira).
Nas mãos da pessoa errada, as coisas só teriam derrapado a ponto de destruir toda a história para sempre. Lembrem-se: a série estava prestes a perder Rick literalmente 17 episódios depois da morte repentina de Carl. Mas foi aí que Angela Kang entrou e, queira admitir ou não, salvou The Walking Dead.
A primeira mudança da nova produtora-executiva foi trazer um frescor à série: um salto temporal, novas locações, novos ideais e costumes que, aos poucos, foram implementados à franquia. Abraçada num tom WESTERN/HORROR, Kang trouxe ao roteiro da série um senso medieval de imprevisibilidade, testando os instintos de sobrevivência dos personagens em relação ao ambiente e demais “colegas” ao limite – uma ferramenta útil não somente para a construção de mundo, como também para a de personagens.
Lembram quando Carl Grimes invadiu o Santuário de Negan, metralhou Salvadores e apareceu dizendo que “toda vida era preciosa” 8 episódios depois? É, infelizmente não foi um surto coletivo, apenas a péssima construção de personagem/roteiro durante a oitava temporada da série.
Angela Kang chegou ao comando de The Walking Dead com este tipo de instabilidade de escrita nas motivações e personalidades dos principais personagens. Teria sido muito fácil usar o salto temporal como muleta narrativa para mudar a essência dos principais personagens do show: se Gimple fazia isso em questão de poucas horas, por que não em um ano, certo? Novamente, a showrunner se sobressaiu e trouxe a tona algumas das melhores construções de personagens da história da série.
O destaque da temporada neste quesito fica por conta dos fantasmas da guerra contra Negan que a showrunner e seu ótimo time de roteiristas usaram na hora de não somente definir o estado do seu elenco, mas de situá-los em arcos próprios e conjuntos.
Em cinco episódios, Kang fez com que as trajetórias de Rick e Maggie tivessem mais consistência do que os 16 da oitava temporada – que viveram em tropeços e mudanças bruscas de comportamento. Em uma temporada completa, Michonne, Carol e Daryl evoluíram o equivalente a 6 anos (literalmente): de decisões a ações, o trio “protagonista” da era pós-Rick passou de personagens que sustentavam-se pelo carisma de seus atores a nomes de peso e extrema relevância.
O elenco coadjuvante, por sua vez, também não fica para trás: Ezekiel, Anne, Enid, Negan, Henry, Jesus e tantos outros personagens sobem na escala narrativa e recebem um real propósito. E mesmo aqueles que perdem espaço de tela devido às mudanças necessárias para a limpeza da casa (Rosita, Tara, Cyndie, Gabriel, Siddiq, Alden), ainda assim possuem uma história palpável, que geram consequências e fogem do corriqueiro “filler” de anos anteriores: não há mais exaustivas reflexões existenciais que não levam a lugar nenhum.
Entrando como um experimento e conduzindo os telespectadores a nova era pós-Rick do show, é impossível sair sem comentar um dos maiores trunfos do ano: a chegada de novos personagens. Ao adicionar novos rostos no time principal e mesclá-los em tramas relevantes e de primeiro escalão, o roteiro fez com que o ar de “protagonismo definido” da série se dissolvesse de vez e estreasse um senso de assembleia como nunca antes visto: Magna, Yumiko, Luke, Connie, Kelly e Lydia (além dos Sussurradores, que serão abordados mais a frente) acolhem novas facetas de personalidade, representatividade e, principalmente, conceito.
PRÓLOGO OU EPÍLOGO?
Angela Kang chegou para trabalhar na nona temporada com uma bagunça gigantesca para lidar em suas mãos. Não apenas as saídas de Rick e Maggie deveriam ser feitas com real propósito, como todas as sementes pelo final da storyline de Negan e Os Salvadores deveriam cultivar consequências reais para não passarem de desperdício – o que, infelizmente, foi a percepção de muitos daqueles que desembarcaram da jornada ao longo dos anos 7 e 8.
Mudando totalmente o tom e se apegando ao que fez as primeiras temporadas da série um sucesso, a nova showrunner e seu esquadrão delimitaram The Walking Dead de volta ao básico: um drama sobre uma família disfuncional vivendo no apocalipse zumbi. O grande diferencial aqui estava no contexto que esta história seria inserida: agora eles não querem apenas sobreviver, mas VIVER neste mundo. Criar laços. Uma sociedade de verdade. E é aí que está o maior acerto de todos.
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“A New Beginning” é o primeiro episódio da história da série sob a tutela geral de Angela Kang. Da abertura ao encerramento, várias das facetas estilísticas da roteirista são empregadas com sucesso, desencadeando em uma série de conceitos que há anos The Walking Dead não conseguia ver: dos diálogos humanos e sem reflexão/exposição barata ao comportamento coletivo do grupo, todos os minutos aqui importam e o foco está novamente nos personagens e no modo que estes contemplam sua existência, objetivos e relações diante os desafios de uma sociedade caída.
Dentro desta cadeia narrativa, Rick Grimes e Maggie Rhee tornam-se os principais protagonistas da história, abrindo uma trama política densa sobre suas lideranças e os modos distintos de viver após a queda ditatorial de Negan. Apesar de discordarem em inúmeros parâmetros, o que poderia ser uma briga novelesca dos anos anteriores dá espaço a um debate ideológico esclarecido e bem resolvido entre dois ótimos personagens com percepções distintas e semelhantes nos mesmos níveis – ambos querem construir um bom futuro para seus filhos (Hershel Jr. e Judith Grimes) em honra da memória de pessoas amadas (Glenn Rhee e Carl Grimes).
O grande trunfo aqui, todavia, está no modo como toda reação gera uma consequência impactante não apenas para os personagens, mas para a história geral; Um exemplo: o enforcamento de Gregory leva Oceanside a buscar justiça com as próprias mãos, que levam Maggie e Daryl a burlarem o acordo com Rick e Michonne quanto ao destino de Negan. Nada mais é por acaso. Ações possuem peso e impactam os personagens, motivações e anseios.
Após sumirem e perderem relevância por mais de dois anos, esta nova fase de The Walking Dead também trouxe de volta os zumbis como um ponto além de ferramenta estética para mortes satisfatórias repletas de gore.
Quase como piada, as criaturas, quando não em bando, são usadas em momentos específicos para mostrar a falta de perigo aos sobreviventes neste ponto do apocalipse – no primeiro episódio, Siddiq se assusta mais com as aranhas saindo de uma das criaturas, do que com a própria. O curioso é que, apesar de parecer gratuito no começo, o roteiro é sagaz para conduzir um pensamento errôneo em relação aos mortos-vivos, que mais tarde – na mesma temporada – receberão um “twist”. Novamente, causa e consequência estão sempre andando lado a lado.
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No saldo final, os cinco primeiros episódios constituem um pequeno epílogo para a história contada durante os 8 primeiros anos de The Walking Dead. Angela Kang, com maestria, conduz uma pequena temporada que serve como o final real de um grande capítulo. A saída de Rick, em “What Comes After“, é a maior prova disso, carregando um ar de series finale em toda a sua épica escala – que carrega muito mais que simbolismo barato, condensando uma reflexão profunda e um admirável estudo de personagem. E, é claro, a ironia de Rick partir na mesma ponte que começou a construir no começo da temporada é apenas outro exemplo de causa e consequência no seu ápice.
Seja motivo ou piada para fingir choque, saiba que um formato estrutural padrão de filmes de 2h foi aplicado no decorrer de, literalmente, 32 episódios completos de 50 minutos durante os anos 7 e 8 de The Walking Dead.
Mas o que importa é que águas passadas não movem moinhos, certo? Quase! E se alguém lhe contasse que a nona temporada e a sétima são, em partes, literais espelhos uma da outra? Pois é. A diferença aqui é o modo como ambas as formas estruturais foram idealizadas e abordadas pelos executores, e como uma falhou miseravelmente, enquanto a outra alcançou prestígio.
Com todas as peças posicionadas e prontos para começarem de vez uma série totalmente nova, Angela Kang e seu time de roteiristas tinham como real propósito reintegrar uma audiência geral a um começo ainda mais novo que aquele de seu prólogo/epílogo de 5 capítulos.
“Who Are You Now“, embora não aparente, possui um dos roteiros mais importantes de todo o currículo da série. O motivo para esta denominação vem do ponto abordado no parágrafo anterior: a reintegração da audiência em relação ao universo. O episódio 06 serve, praticamente, como o piloto de uma nova The Walking Dead: há um novo tom, uma nova perspectiva e, é claro, novos protagonistas.
Escrito por Eddie Guzelian, o capítulo segue um molde fora do comum para este mesmo período em temporadas passadas. De forma fluida e coesa, personagens, situações, mistérios e sementes de arcos são plantados no decorrer de seus 50 minutos de duração.
O maior mérito, todavia, aparece com a forma escolhida para unir este emaranhado: Angela Kang (e Guzelian) estabelece(m) um monólogo para Michonne logo no início do capítulo – o famoso “cold opening”, antes da abertura – para relembrar a audiência de que este ainda é o mesmo universo, mas que, apesar de todos os fantasmas ainda assombrarem a vida dos sobreviventes (Daryl, Mich e Carol, particularmente), agora o foco é seguir em frente. Abre-se espaço então para um contraste muito bem construído entre o grupo liderado por Magna e, é claro, a pequena Judith Grimes, agora crescida, que exploram uma nova Zona Segura de Alexandria, e o Reino de Ezekiel, que parece estagnado aos mesmos personagens – apesar de um Henry 6 anos mais velho – e a um passado de ruínas, que estão desmoronando aos poucos.
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Após um longo foco na segurança dos muros e na estabilidade da vida nesta nova era, Kang apresenta um mistério feito com timing construído de forma crescente e bem conduzido: afinal, como todo o resto da série, estariam os zumbis evoluindo também? Permeando por três episódios (6,7 e 8), a ameaça dos doentios Sussurradores resgata um clima de terror nostálgico das décadas de 60 a 80, trazendo as criaturas sanguinárias de volta ao patamar de perigo extremo. Com a ajuda de David Leslie-Johnson, conhecido pelo universo da franquia “Invocação do Mal”, The Walking Dead entra num território de terror/suspense/horror há tempos não explorado, e faz isso com sucesso.
A revelação proposital da ameaça, feita com a morte inesperada de Jesus, só é chocante graças ao ótimo trabalho feito pela construção do roteiro – unido, é claro, ao poder da direção, que será abordada em um artigo futuro.
E é neste ponto que a comparação feita no início deste tópico começa a fazer sentido: a sétima e a nona temporada são, em essência, idênticas. A grande diferença está na escrita, que nas mãos do novo time entrega um desenvolvimento árduo e equilibrado de causa e consequência.
A introdução de Alpha, por exemplo, é feita de forma tão sádica e misteriosa quanto a de Negan: mas enquanto este foi ameaçador por apenas dois episódios, a vilã de Samantha Morton fez jus ao manto de antagonista do episódio 9 ao 16, mesmo estando ausente na maior parte destes. A aura sinistra do grupo foi trabalhada a fundo em seu conceito, mas não só em seu lado psicológico ou sádico: o temor de encontrar uma horda sem saber se é de “mortos”, por exemplo, permeia até os últimos minutos da season finale, “The Storm“. Há um equilíbrio na sensível escrita da nova showrunner, e é isto que levou a segunda parte da nona temporada às listas de mais memoráveis da série inteira.
E para finalizar esta notável amostra de boa-condução narrativa da temporada, há de se comentar sobre duas pérolas do nono ano, e dois dos melhores episódios da história da série: “Scars” e “The Calm Before“. Duas entradas COMPLETAMENTE DISTINTAS em termos de narrativa e condução, mas com poder relativamente igual em termos de desenvolvimento, ação, consequência e impacto.
“Scars”, escrito pela estreante Vivian Tse, é o 14º episódio da nona temporada e aproveita a recente introdução da personagem Lydia para trazer à tona lapsos de eventos do período que marcou o salto temporal de seis anos.
Praticamente protagonizado por Michonne, os 45 minutos contrastam o sentimento de culpa e temor da personagem pela perda/desaparecimento de sua filha no passado e presente, que acaba fora dos muros e em perigo graças a decisões tomadas de cabeça quente e por falta de conversa.
O poder da escrita nesta entrada não está apenas no desenvolvimento da personagem de Danai Gurira, que é excepcional, mas sim no modo como lida com as consequências da busca pela garota: em ambos os casos, Michonne foi obrigada a passar por um teste psicológico que a muda para sempre. No primeiro, que é chocantemente visceral, é forçada a matar um grupo de crianças, enquanto no segundo, é forçada a se abrir pela primeira e vez e desabafar sobre seus sentimentos com a filha, o que nunca foi fácil para a guerreira.
No fim das contas, “Scars” resgata o senso de uma história conduzida por personagens humanos, e não por ações ou prescrições dos quadrinhos.
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Já “The Calm Before”, escrito pela dupla Geraldine Inoa e Channing Powell, é o típico episódio evento de The Walking Dead. Ou melhor: o típico episódio evento feito da maneira certa.
Em um ponto crítico a ser adaptado das HQs de Robert Kirkman, Kang orienta o roteiro de Inoa e Powell usando uma técnica de “bomba-relógio”: enquanto a feira ocorre normalmente no Reino para unir as comunidades, Alpha se infiltra no local, onde passa a analisar friamente o comportamento dos sobreviventes e seu senso organizacional. Apesar de sua construção lenta, o senso de instabilidade é presente durante toda a projeção, e o pagamento entregue no último ato é desolador e excruciante em inúmeros níveis: 11 personagens conhecidos do público são decapitados e expostos em estacas na delimitação de território dos Sussurradores.
O evento é grotesco e tão bem executado que, quando acontece, mantém um ar de desconforto e luto que honra o fato de “The Calm Before” perambular entre os 15 episódios mais bem avaliados da história da série de acordo com o IMDB.
É óbvio que ainda existem algumas pequenas falhas aqui e ali, mas isso faz parte do universo da escrita televisiva. Pequenos problemas de senso geográfico, por exemplo, são esquemas difíceis de buscar desvio desde os primórdios de Walking Dead, e por isso já soma muito mais como uma licença poética neste atual ponto.
No fim das contas, The Walking Dead revigorou-se e finalmente se encontrou depois de tantos anos no ar. Agora resta torcer para que Kang continue a trabalhar personagens, conceitos e trama a altura de seu potencial como showrunner – pois, se isso for um indicativo, a série ainda pode entregar um satisfatório final.
A primeira parte da 10ª temporada de The Walking Dead chega no Brasil a partir de domingo, 6 de outubro, às 22h, no FOX Channel.
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