Cientista Defende Verdades Por Trás do Mito dos Zumbis

O etnobotânico Wade Davis não gosta de ser chamado de “zumbiólogo”. Ainda assim, aos 56 anos, este cientista canadense que hoje trabalha como explorador da “National Geographic” é um dos raros acadêmicos que se dedicou a entender o que há de verdade naquilo que conhecemos como zumbis. Confiram a materia e entrevista que o portal G1 realizou com Davis:

Em quatro anos de pesquisa na década de 1980 – três dos quais vividos no Haiti, berço do mito contemporâneo dos zumbis –, Davis afirma ter encontrado “um veneno que faz alguém parecer que está morto, mesmo que esteja vivo”. A poção, produzida por feiticeiros vodus a partir da toxina de um peixe nativo misturada a ervas alucinógenas e restos humanos como ossos e pele, seria o elemento central no processo de zumbificação, prática que iria bem além da simples magia negra, defende o cientista, mas que funcionaria como punição social dentro da cultura e dos costumes da religião vodu.

Suas conclusões foram registradas em dois livros “Passage of darkness: the ethnobiology of the Haitian zombie”, de 1988, resultado da tese de doutorado de Davis em Harvard, e “A serpente e o arco-íris”, lançado no Brasil pela Jorge Zahar em 1986, e que ganhou uma adaptação para o cinema no ano seguinte pelas mãos de Wes Craven, de “A hora do pesadelo” , da qual o autor não quer nem ouvir falar.

“O que minha pesquisa tenta sugerir não é que exista uma linha de produção de zumbis no Haiti, mas que o conceito se baseia em algo real”, argumenta Davis em entrevista por telefone ao G1. “[Na lenda] um zumbi é alguém que teve sua alma roubada por um feitiço e que fica capturado em um estado de purgatório perpétuo e que acaba sendo mandado para trabalhar como escravo em plantações. Hoje sabemos que não há nenhum tipo de incentivo para criar uma força de escravos-zumbis no Haiti, mas dada a história colonial aliada à ideia de perder a sua alma – o que significa perder a possibilidade de ter uma morte digna para o voduista –, tornar-se um zumbi é um destino pior do que a morte”, explica.

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Leia a seguir trechos da entrevista concedida por Davis de sua casa, em Washington DC.

G1 – Descobri só há pouco que um de seus livros, “A serpente e o arco-íris”, também já foi transformado em filme…

Wade Davis – Sim, infelizmente.Foi uma dessas coisas em que eles prometem um diretor e depois aparecem com outro. Nesse caso me prometeram Peter Weir [“O ano que vivemos em perigo”, “A testemunha”, “Sociedade dos poetas mortos”, “O show de Truman”] e achei que ele seria um ótimo diretor para aquele livro em especial. Mas ele não podia fazer porque tinha acabado de fazer um filme e precisava descansar. E, sendo um jovem escritor, você sabe que não tem muito controle sobre o processo, infelizmente.

G1 – Qual é sua opinião geral sobre os filmes de Hollywood que tratam de zumbis?

Davis – É preciso voltar ao porquê de termos essa ideia de vodu como magia negra. Se você se perguntar sobre as grandes religiões do mundo – budismo, judaísmo, cristianismo, islamismo – haverá sempre um continente deixado de fora, a África. Afora os países islâmicos, o que se assume é que os africanos não tem religião, mas é claro que têm. Quando os africanos foram trocados como escravos, eles trouxeram suas crenças religiosas e, dependendo de aonde as pessoas foram levadas, nas diferentes circunstâncias históricas, formas diferentes de religião se desenvolveram. Você tem a santeria nos países de colonização hispânica como Porto Rico, Cuba e República Dominicana, tem o candomblé no Brasil e o vodu no Haiti. Vodu não é magia, mas uma forma complexa e metafísica de ver o mundo. É uma religião dinâmica e viva em que os seres humanos entram em contato com os mortos e se tornam os espíritos e múltiplas expressões de Deus.

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E de onde se tirou essa ideia de o vodu ser demoníaco? Em primeiro lugar, o Haiti era a única nação negra independente por cem anos. Os haitianos costumavam comprar navios de escravos que iriam para os EUA e dar-lhes liberdade no Haiti. O país deu dinheiro a Simon Bolívar em suas lutas de liberação na Gran Colômbia. Mas em 1915 o Exército americano ocupou o Haiti. Era época da segregação, e a maioria dos soldados eram homens sulistas, crescidos em meio ao racismo, e todos, do cabo ao sargento, acabaram assinando contrato para escrever um livro. E os livros que saíam tinham títulos como “Fogo vodu no Haiti”, “Aparição na terra vodu” ou “A ilha mágica”, todos cheios de crianças que eram levadas para o caldeirão e zumbis se levantando dos túmulos para atacar pessoas. Foram essas histórias que deram origem aos filmes de Hollywood da RKO dos anos 1940. Esses livros e filmes terríveis diziam essencialmente aos americanos que qualquer país onde coisas terríveis assim acontecem precisam de redenção pela ocupação militar.

G1 – Portanto, o sr. está dizendo que o preconceito marcou esses primeiros filmes?

Davis – Nenhuma dessas coisas era consciente. Não significa que alguém em Hollywood tenha dito: “vamos pegar os negros”. Era um período de segregação. Mas, por sinal, isso não foi embora. Você deve ter ouvido falar que o fundamentalista cristão e ex-candidato ao governo dos EUA Pat Robertson, na semana passada, culpou os haitianos pelo terremoto, dizendo que a tragédia é resultado de um pacto que eles teriam feito com o diabo na época da revolução. É difícil imaginar algo mais ignorante, cruel e insensível sendo dito por qualquer um.

G1 – De todo modo, os primeiros filmes de Hollywood, da década de 30 e 40, pareciam estar mais afinados com os relatos de zumbis haitianos – seres que tinham sido declarado mortos, enterrados e depois trazidos de volta à vida sem vontade própria por um feiticeiro vodu. Não eram as hordas de comedores de carne humana em que se transformaram os zumbis do cinema a partir dos anos 60.

Davis – O que minha pesquisa tenta sugerir não é que exista uma linha de produção de zumbis no Haiti, mas que o conceito se baseia em algo real. [Na lenda] um zumbi é alguém que teve sua alma roubada por um feitiço e que fica capturado em um estado de purgatório perpétuo e que acaba sendo mandado para trabalhar como escravo em plantações. Hoje sabemos que não há nenhum tipo de incentivo para criar uma força de escravos-zumbis no Haiti, mas dada a história colonial aliada à ideia de perder a sua alma – o que significa perder a possibilidade de ter uma morte digna para o voduista –, tornar-se um zumbi é um destino pior do que a morte. É por isso que no Haiti não se teme os zumbis, mas se tornar um zumbi.

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O que minha pesquisa faz é perguntar quais são as ramificações dessa ideia. Seria possível existir um veneno que fizesse as pessoas aparentarem estar mortas para depois tornarem ao mundo dos vivos? Se isso existisse, talvez tivesse implicações médicas importantes. Esse veneno foi citado na literatura e nas lendas do povo, e há de fato um veneno no Haiti que tem um ingrediente que sabemos cientificamente que pode fazer precisamente isso: fazer alguém parecer que está morto, mesmo que esteja vivo. Mas fui procurar a base química do evento e acabei explorando o lado social, psicológico, político e cultural das possibilidades químicas. Sabemos de sociedades secretas na África Equatorial que, por uma função política tradicional, punem as pessoas com venenos. No Haiti também há sociedades secretas no campo que aparentam ter uma função política e que fazem a mesma coisa. Minha conclusão foi que a noção de zumbi, como sendo um destino pior que a morte, era de certa forma a punição maior para quem violasse as regras de uma cultura tradicional.

E os primeiros filmes tentavam refletir isso. Em partes por influência de uma folclorista maravilhosa chamada Zora Neale Hurston, que [nos anos 30] escreveu o livro “Tell my horse”, em que basicamente diz tudo isso sobre zumbis. Acho que os primeiros filmes de Hollywood de certa forma espelhavam o que Zora estava escrevendo. Mas então os zumbis se tornaram parte do gênero mais amplo dos filmes de horror, junto com múmias e fantasmas… Mas isso de certo modo reflete todas as nossas obsessões com a morte e a incerteza sobre o que ela representa, o pesadelo terrível da morte voltando para assombrar os vivos. Acho que os filmes de Hollywood, terríveis como podem ser, refletem uma fascinação geral humana por essa noção.

G1 – É possível afirmar que o conceito de zumbi como uma pessoa trazida de volta à vida sob o comando de um mestre é algo genuinamente haitiano? O zumbi haitiano é o “original”?

Davis – Uma das coisas que nunca investiguei a fundo é que o peixe que contém a toxina que identifiquei [como fundamental no preparo do veneno] existe também em águas de rios da África Equatorial. Mas acho que uma das coisas que aconteceu nas Américas é que, para onde que fossem os africanos, eles estavam sujeitos a vários tipos de influências. E uma das coisas que é bastante única no Haiti é que, diferentemente da Jamaica que foi colônia britânica até 1963, o Haiti era um país independente desde 1804. E depois da revolta dos escravos um certo manto de isolamento cobriu o Haiti, até a igreja foi expulsa. Enquanto no século XIX lugares como Brasil ou Jamaica ou o Sul dos EUA eram expostos à cultura europeia, o Haiti já estava isolado, e formas africanas persisitiram no Haiti de forma significativa. Claro que há influências da Europa, da Igreja Católica, o [idioma] francês se tornou o creole, mas o isolamento e a influência da Àfrica fizeram do Haiti único. Embora outras culturas, como o candomblé no Brasil, tenham noções de possessões de espíritos e o senso fundamental de adoração de ancestrais, o zumbi, na minha experiência, é algo unicamente haitiano.

G1 – No Brasil também temos nosso Zumbi dos Palmares, um líder negro das revoltas escravas, mas que não parece ter a ver com a noção de zumbi dos haitianos.

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Davis – É sempre perigoso dizer porque as palavras podem ser usadas de múltiplas maneiras. Há várias origens diferentes para a palavra zumbi e não se sabe claramente qual é a correta. Vodu é só uma forma de dizer “espírito de deus”. Não se esqueça também que houve muito contato entre os caribenhos e o Brasil naquela época, claro. A revolta bem-sucedida dos escravos no Haiti ficou conhecida e provavelmente também incentivou os brasileiros assim como os americanos a fazerem as suas.

G1 – Seus livros foram publicados na década de 80. Desde então deu seguimento à pesquisa?

Davis – Eu nunca me vi como um expert em vodu. Estava trabalho na região amazônica como botânico e antropólogo quando recebi convite para ir ao Haiti pesquisar os zumbis. Esse acabou se tornando o tema do meu doutorado em Harvard, fiz os livros, mas no final o filme foi tão ruim, se tornou tão controvertido… Um amigo professor uma vez chegou até a mim e disse, brincando, você quer se tornar um zumbiólogo, quer passar o resto da vida defendendo essa hipótese e correndo pelo Haiti procurando zumbis? Eu ri e disse que não. Passei três anos no Haiti e quatro anos no total pensando sobre vodu e escrevendo os dois livros, realmente já disse tudo o que eu queria dizer. Tinha muito mais interesse em questões gerais de cultura, e já tendo estado no Haiti queria ir pra outro lugar. Era hora de mudar. Escrevi mais 14 outros livros, fiz outros filmes e agora sou um explorador pela ”National Geographic”, celebrando as maravilhas das outras culturas. O que eu sempre quis fazer é tentar expôr os equívocos que temos sobre o outro. E foi isso que tentei fazer no Haiti.

G1 – Durante o tempo em que passou lá, você fez diversos amigos no Haiti. Teve notícias deles após o terremoto recente em Porto Príncipe? Acha que a religião vodu teria uma resposta diferente a eventos como esse?

Davis – Sim. Um dos meus amigos é uma figura importante em “A serpente e o arco-íris”. Mas ele e sua família estão bem. Os africanos dizem que nenhum evento tem uma vida própria sua, e tenho certeza de que haverá fortes consequências psicológicas. Mas isso acontece em qualquer cultura. Todos se fazem a pergunta fundamental: por que nós, por que agora, por que isso aconteceu depois de tudo o que passamos? Afinal, era isso que os americanos estavam se perguntando depois dos ataques de 11 de setembro: por que eles nos odeiam? Por que isso está acontecendo? Acho que essa é uma resposta bastante universal para cataclismas tão inesperados. Mas uma coisa importante para a comunidade mundial se lembrar é o quanto Haiti já deu para o mundo.

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Quando aquele homem horrível – Pat Robertson – disse aquilo sobre o terremoto e o pacto com o diabo, ele não estava só revelando sua loucura e crueldade mas também sua própria ignorância sobre a história americana. Se não fosse pela revolta dos escravos e patriotas haitianos, os americanos estariam provavelmente falando francês a oeste do Mississipi. Porque Napoleão no alto de seu poderio chegou a mandar um batalhão para ir ao Haiti, massacrar a revolta dos rebeldes, e então seguir até Nova Orleans, onde deveria derrotar as colônias espanholas e britânicas e restaurar o domínio francês. Os EUA devem uma boa parte ao Haiti por derrotar aquelas forças de Napoleão.

Agora é hora de a comunidade internacional se unir pelo Haiti. E há tanto que pode ser feito. Os haitianos sofreram por tanto tempo, e o incrível é que em tempos de escassez as pessoas voltam suas mentes para a imaginação. O Haiti é possivelmente tão interessante culturalmente quanto qualquer outro lugar nas Américas, essas pessoas têm uma reserva impressionante de espírito, de esperança e de poder. Só se espera que essa capacidade possa ser usada e não permaneça sob o domínio de oficiais corruptos. O que o Haiti precisa é de investimentos reais, não de piedade.

Fonte: G1

Rafael Façanha

Zumbi Chefe no The Walking Dead BR. Treinador Pokémon, viciado em Magic, conectado 24 horas por dia e até já fui reconhecido como Wikipédia-Viva de The Walking Dead. Meu mundo é dividido em assistir muitas séries e filmes.

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